Não foi agora, mas a lembrança ganha contornos de
redescoberta. Não foi agora, mas foi puro sentimento. Não guardei estes
pedaços de memória, mas trouxeram de volta a mim isto que fala do que fiz, do
que fui e do que senti. Me identifiquei me vendo e me sentindo ali, com
temperos, com cores, com açúcar e com afeto.
Um grande amigo desde tempos indianos me trouxe estas
memórias e me senti como se as vivesse fundo novamente. Lembranças de um tempo,
de pessoas e de experiências que me marcaram definitivamente.
Contextualizando: eu, com cerca de 21 anos, universitária
portanto, fazendo um estágio em uma de minhas áreas de formação, comércio
exterior, morei na Índia por 7 meses, compreendendo o período de duração de meu
estágio e outro mês de viagens por aquele mundo inteiro que a Índia representa.
O texto que me enviou o Renato, o único brasileiro que dividiu comigo os tempos de Índia, foi algo que fiz como minhas impressões deste
outro universo, depois de assentar naquele cotidiano antípoda, no que vivia, ao dia. Texto enviado a todos
os amigos e familiares por email, como tenho hábito de compartilhar o que me
apraz e me provoca o novo, o diferente.
Citando a mim mesma em tempos idos, mas parte do que sou,
sigo adiante:
“Eu simplesmente não tenho mais palavras para descrever esta
experiência que vou tendo a oportunidade de viver. É fascinante e única. O
fascínio maior não é conhecer e visitar a Índia, é vivê-la. É ter a
oportunidade de viver o dia a dia de um povo tão diverso, de entrar na casa
deles, brincar com seus filhos na rua, ser chamada de irmãzinha (Polianadidi!) pelos filhos da
vizinha, conhecer cada pessoa de minha rua. É ser conhecida por todos eles pelo
nome e ouvi-los me chamando quando vou chegando em casa após o trabalho (Polianaben!)... isto
é indescritível! É ouvir de uma funcionária grávida da empresa em que trabalho
que ela quer que a filha seja igualzinha a mim, porque tenho feições próximas
dos indianos mas tenho a pele muito branca. É trabalhar todos os dias com os
indianos e sentir intimamente o significado da palavra receptividade. É ser convidada todos os dias para jantar na
casa de um dos colegas de trabalho e senti-los totalmente orgulhosos de que eu
aceite. Sentir o quanto ficam ainda mais orgulhosos quando me visto com as roupas
tradicionais dali. É frequentar suas casas coloridas, plenas de pôsteres,
faixas, velas, incensos e imagens de Vishnu, Shiva e Brahma, que se poderia
chamar, simplificadamente, de Santa Trindade do hinduísmo.
É causar um alvoroço completo no parque da cidade no
domingo, passeando entre outros três colegas estrangeiros. Ao ser vistos pelos
vários grupos de crianças que excursionavam pelo parque com os professores, ser
cercados por centenas delas, centenas, todas rindo, todas morenas, em suas
roupas coloridas, seus brincos e piercings, todas rindo e perguntando: what is
your name? A razão? Sermos estrangeiros... (foi uma experiência incrível; de
repende havia, sei lá, umas cento e tantas crianças cercando a nós quatro no
parque, rindo, brigando para encostar em nós).
É ser olhada e apontada na rua todos os dias e saber lidar
com isto. Mas é também receber um sorriso de cada desconhecido, por ser
estrangeira. Vou sentir falta de toda esta atenção!
É experimentar uma comida nova todos os dias e comer demais
porque todos te oferecem comida o tempo todo e não aceitam não como resposta. É
ouvir que você parece mal alimentada, precisa ganhar mais corpo para ficar
bonita.
É adorar o vegetariano e descobrir que a diversidade de
vegetais, legumes, raízes, temperos e especiarias pode suprir muito bem a falta de carne. É querer
ser vegetariana depois de visitar uma casa de carnes.
É ter diarreia ao menos uma vez por semana e só achar ruim
porque você vai ter que diminuir na pimenta. É beber água da torneira que
alguém te oferece em casa, sabendo de todas as contra indicações.
É esquecer o muito obrigada e o lamento, o me desculpe. Isto é
difícil! Lembrar-se que sendo todos nós irmãos, não há porque agradecer ou
lamentar. Lembrar-se que na concepção deles, isto aumenta as formalidades e,
portanto, a distância entre as pessoas.
É tirar o sapato para entrar na casa dos outros. É comer com
a mão e adorar. Andar com as unhas sempre sujas de comida. É trançar os cabelos
todos os dias, para sair de motocicleta. Fazer o contorno preto em torno dos
olhos como única maquiagem obrigatória (eles colocam até nos bebês).
É colocar um baita piercing de brilhante no nariz, comprar
um tanto de bindi de todas as cores, para combinar com as roupas. Muitos. Usar muitos brincos de prata pesados e tornozeleiras com pequenos sinos.
É ver todos os dias o mais belo por do sol jamais visto,
vermelho, grande. É aprender a sublimar a poluição, esquecer a poeira, aprender
a conviver com o caos e encontrar ordem dentro
dele. Conviver com uma permanente
névoa de poeira e desconsiderá-la.
É aprender a considerar a buzina como um prolongamento da
mão e usá-la incondicionalmente, independente da razão. Só para dizer: estou
aqui. É dar caminho não só para as vacas, mas para os porcos, cabritos,
cachorros e macacos que perambulam em meio ao trânsito já caótico por si! É
andar atrás dos caminhões e ler no para choques: buzine, por favor! Ok!
É se locomover principalmente de moto ou qualquer outro veículo de duas rodas. É acostumar-se a andar em quatro ou cinco nos rickshaws (taxis feitos sobre motocicletas, com um banco para dois atrás, onde andam quatro ou cinco) e de três em motocicletas – no mínimo. É morar com pessoas de todos os países e conviver com suas diferenças, fazer piada delas, morrer de rir e ganhar grandes amigos, fazendo festa quase todas as noites.
É se locomover principalmente de moto ou qualquer outro veículo de duas rodas. É acostumar-se a andar em quatro ou cinco nos rickshaws (taxis feitos sobre motocicletas, com um banco para dois atrás, onde andam quatro ou cinco) e de três em motocicletas – no mínimo. É morar com pessoas de todos os países e conviver com suas diferenças, fazer piada delas, morrer de rir e ganhar grandes amigos, fazendo festa quase todas as noites.
É não ter água quente em casa, ter no banheiro um vaso
sanitário no chão, que não tem assento (um vaso como um buraco no chão, com
encaixe para os pés), se acostumar a não ter papel higiênico em nenhum outro lugar,
que não sua própria casa (e só porque você é estrangeiro).
É esquecer parâmetros tais como moda, design, conforto,
estilo e concluir que eles não fazem
falta alguma. É esquecer shorts, decotes, minissaias, tops, por mais calor que
você sinta, sabendo que este calor pode
chegar a 45º. Mas, por outro lado, é
passear em sedas, cores e brilhos; intensos e fortes, pintando a Índia nos tons
das roupas de suas mulheres.
É trabalhar muito de segunda a sábado, horário integral e
repor feriados aos domingos (isto é dureza!).
É concluir que sim, é possível haver muito mais pobreza que
no Brasil. Muito mais. E que aqui, mais do que lá, a corrupção não é uma
distorção dos valores morais, mas um meio de vida.
É concluir que mesmo em meio a esta indescritível confusão
pode haver eficiência, tecnologia, produtividade, trabalho, desenvolvimento e
reforçar uma ideia prévia de que o
preconceito é uma merda! (principalmente para nós brasileiros, que também o
vivemos na pele.)
É, enfim, viver cada dia dessa experiência maravilhosa e
saber o quando isto pode ser importante para você, é aprender daí a diferenciar
alguns valores universais de algumas diferenças culturais, aprender a se
despojar de seus padrões e parâmetros para mais plena e intensamente viver uma
outra vida. Que não é sua, não te pertence, mas que, de repente, você pega
emprestado, se familiariza e cresce com ela.
É (tudo) isso aí!