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sábado, 4 de julho de 2020

A LIBERDADE DE CADA UM

A Liberdade protagonista
Sempre que chego ela já está ali, sempre um grupinho ao seu redor ou sempre em outro grupo ao redor de alguém. A senhora do cachorro vestido parece ser algum personagem importante da cidade, alguma ilustríssima dama que eu, distante de tais ilustrações, ignore.

Ou então, é tão somente uma senhora desinibida e simpática, dedicando suas manhãs aos também ilustres, porém desconhecidos, que por ali passam e por ali se deixam ficar.

Sempre que chego, ela já está ali e sempre que saio, ela permanece. Pouco importa se chego 9, 10 ou 11 e saio 10, 11 ou 12. A senhora do cachorro vestido passeia seu cachorro vestido por horas a fio, religiosamente, todos os dias, sempre indefectível com a gola da camisa polo aparecendo por cima da blusa de lã xadrez. Xadrez como a roupa do cachorro vestido . Óculos escuros. Nela, não no cachorro.

De banco em banco da praça, senta-se com alguns, caminha com outros. Responde a todas as pesquisas de opinião que rondam a Liberdade (a praça!). E ela se deixa ficar. Até quando eu não sei. Um dia ainda fico para ver seu final, ou melhor, seu destino.

Quem sabe a sigo por detrás das árvores, depois dos carros, a descobrir quem é esta senhora e por que diabos passeia ser cachorro VESTIDO, TODAS as manhãs, a manhã toda.

Aposentadoria seria uma resposta pouca, vazia, insuficiente. Ademais, a senhora não me parece idosa. Me parece, antes, assim, em termos pouco graciosos, coroa.

Aposentadoria, solidão, loucura. Para quê mesmo eu quereria uma razão? Feliz a senhora do cachorro vestido se tem as dela ou se delas não precisa.

Razões suficientes, parece, as tem o senhor meu vizinho de fugir de meus olhares e meus passos intermináveis around the square. Razões que compreendo.

Eu que o encontrava, o senhor meu vizinho, no elevador do edifício Sobrado, subindo ou descendo correndo com seu terno e sua pasta de couro preta.  Ele que corria entre 'bons dias' e 'boas noites', queda-se sentado em um banco, escondido por trás de uma estátua.

Me evita. Nenhum bom dia. Eu passo olhando para o outro lado, para o Palácio do Governo, solidária a sua frustração de se descobrir, de repente, desnecessário dentro de casa, afastado da dignidade de seu terno, sua pasta preta de couro, sua pressa e seu estresse.

Sua mulher decerto move céus e terra, quer dizer, mesas e cadeiras, panelas e frigideiras, por toda a manhã! E nesta turbulência matinal, a presença do marido rondando, tornou-se um estorvo.

Ele que, há décadas, só chegava à hora do almoço, para sair hora e meia depois, fica agora sapateando o chão  encerado, farejando as panelas, rondando.

Até tenta ler seu jornal no quarto, na varanda, calado e quieto, quase invisível. Quem dera. Lá vem a mulher de vassoura, rodo, pano de chão, todo o arsenal. - Levanta o pé, tira o sapato, não pisa aí, dá licença um minuto!

Refugiou-se na praça. Acreditou-se confortado por um possível anonimato, buscando em seu conforto, a fuga das justificativas, que ninguém pediu. Decerto pergunta-se: para que, afinal?

Quisera eu não causar-lhe o tormento de procurar o anônimo sossego em outros sítios!


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