“Só agora é que assoma, muito lento, o difícil clarão riminiscente, ao termo talvez de longuíssima viagem...”
E o clarão, apesar de sua (sem) velocidade, é permanente. Repito sempre a todos ao meu redor, que apesar de vagarosamente, a recuperação é uma ascendente estimulante. Toda semana consigo pontuar algo que não conseguia antes ou se conseguia, o fazia visivelmente mal ou pior.
A memória recente, a consciência, a lógica, o senso crítico e outros membros da mesma família neurológica, ou da razão ‘itself’, não estavam lá comigo e aprendemos todos ( familiares e outros laços afetivos) que em termos de traumatismo ou o que quer que seja afetando o cérebro, “perdida a claridade do juízo”, o que não está lá, precisa ser estimulado.
Reitero, portanto, no meu caso, ao menos, a visível e notória força do estímulo. Como toda informação está, de certa forma, enraizada. Tenho que lembrar meu organismo que sim, já sei fazer aquilo. Dou a ele a lembrança e lhe basta este ‘lampejo’ para que ele pegue as rédeas e, muitas vezes, siga o caminho sozinho. Parece autodidata. Tudo o que perdi e desaprendi, muitas vezes, me basta um vislumbre e em uma, duas ou três tentativas que engreno e sigo REaprendendo e REfazendo sozinha.
Quando fiz força por voltar a trabalhar, a contragosto de meus pais e outros ao meu redor, o documento médico atestando minha condição PNE (Portadora de necessidades especiais), além de um código CID (Código Internacional de Doenças), trazia ainda, “raciocínio lógico afetado e confusão mental”.
Hoje vejo que este documento não pontuava minha necessidade que considero mais especial. A (DES)memória. Sabemos, claro, da importância da memória enquanto função cognitiva e até relacional, social. Mas enquanto não precisamos e sentimos, efetivamente, suas lacunas, não temos NENHUMA ideia de sua dimensão.
O que somos além do que construímos, do que a memória faz de nós? Uma linguagem cifrada que muitas vezes nos faz agir sem sabermos por quê, como nos ensina James Hillman em seu ‘O Código do Ser’. Nossas escolhas vida afora, “incluindo-se aí aquelas determinantes, estão sedimentadas no que somos, em nossa individualidade.
Hillman postula ainda que nossa maior razão de vida está no processo de individuação. É na crença em nossa individualidade e, ainda mais, na unicidade, que reside a vontade de vida, de ser mais.
E “Reperdida a remembrança, a representação de tudo se desordena.” Quem sou eu? Que certezas, crenças, valores me alicerçam e justificam?
Além de perdida a memória de um tempo importante na formação de minha identidade; com o raciocínio lógico afetado, somado à confusão mental, eu não articulava pensamento, fala, referências. Associação de qualquer natureza era um luxo muito grande para minhas sinapses perdidas e desconectadas.
Assim, passei um tempo perdida dentro de mim, sem me dar conta de nada, do ocorrido, do redor, das causas, das possibilidades.
Mas, com o tempo e com o passar das ocorrências e, ainda mais dos estímulos fui percebendo e sentindo que o que está em mim, verdadeiramente construído, independe de memória. Tem raiz mais funda. Talvez, como nos ensina Jung, seja mesmo anterior.
“Potencialmente a personalidade de cada indivíduo já está presente nele no seu nascimento e cada um já vem ao mundo com um determinado equipamento arquetípico que, encontrando os estímulos adequados no meio ambiente, vai permitir sua adaptação à realidade. Esse programa arquetípico que constitui nosso ser em potencial, ao qual Jung denominou Self ou Si-Mesmo, abrange a personalidade total, com sua parte consciente e inconsciente.
Como um diretor de teatro, o Si-Mesmo é uma espécie de organizador central que coordena as inúmeras ações, trocas e relações de vários personagens: os aspectos da personalidade. Ele é responsável pela caracterização da individualidade de cada pessoa, buscando sua melhor adaptação possível nas diversas fases do desenvolvimento ao longo da vida.”
E assim vou sentindo e vendo minha individualidade sendo ‘re’construída ‘exatamente como me contam que eu era, na personalidade. Vou me revelando eu mesma no gosto, nas opiniões, nas atitudes, até mesmo nos textos que escrevo ou encaminho a todos, desde sempre. Ao passo e ao dia, sigo me reconstruindo com meus antigos alicerces que, ainda que silentes, estão em mim, e com o grande aprendizado que tive, tijolos novos nesta construção.
“Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo! Só aquilo. Só tudo”.
Conforme G Rosa " o real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia".
ResponderExcluirVc está no meio da travessia da sua ( des ) memória.
Márcia Araújo
"Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando."
ResponderExcluirNa balada roseana.
Breno.