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domingo, 19 de janeiro de 2014

disfunção erótica

A personagem Joe, jovem (Stacy Martin)

O sexo insaciavelmente performado e uma consequente mecanicidade do ato é um dos ângulos dados por Lars Von Trier à ninfomania, enquanto disfunção. Não há conquista, não há desejo, não há tesão. Todos os nossos paradigmas românticos cercando qualquer ato sexual, mesmo aqueles mais pervertidos, são desmontados.

‘Ninfomaníaca’,  Volume 1, é um bom filme, ainda que provocativo e indigesto, assinatura do diretor.  É um filme incompleto, no entanto, porque dividido em dois. É meio filme, de um corte supostamente censurado do original.

Dizem as ‘más línguas’ que, a certa altura, Lars deixou claro que seu filho (ops, seu filme) ultrapassaria as cinco horas de duração. Os produtores associados mundo afora  questionaram a possibilidade de colocar isto tudo tanto (no conteúdo  e na duração) em uma sessão regular. Colocaram, assim, duas condições:  dividir o material em duas partes, duas sessões, portanto; e retirar “o excesso de pornografia” existente na obra.

No filme, Joe (Charlotte Gainsbourg) é encontrada na rua, cheia de hematomas, desacordada e ferida, por Seligman. E ela começa a  contar a ele, exaustivamente, suas aventuras sexuais, sob o peso de uma grande culpa. Contando a seu interlocutor, eleito confidente e a nós, portanto, ela adverte: a história vai ser longa e com cunho moral.

Seligman nos  oferece aí um contraponto. Um  intelectual solitário, não a julga em momento algum. Apaixonado por pesca, traça paralelos entre as artimanhas para atrair peixes e as técnicas usadas por Joe para seduzir os machos que vai abatendo pelo caminho e segue, ao longo da trama, fazendo referências a Edgar Alan Poe, Thomas Mann, à bíblia, à matemática, à música clássica, diante do relato picante e melancólico de sua confidente. São pílulas de uma cultura erudita ao longo de trama ácida.

Joe nos dá detalhes de uma sua incansável busca de sentido. Do corpo, do desejo e da vida, por fim. Neste ponto, Uma Thurman, em participação carregada de ironia, nos dá possível chave. Para ela, a ninfomania é uma insensibilidade.

A personagem parece livrar-se de um mal, a virgindade. Esse e outros  episódios sexuais são narrados em flashback para Seligman, em uma dimensão indigesta do vício. Vemos  a Joe adulta contando suas desventuras, carregando uma culpa e vemos também a Joe jovem (Stacy Martin) e inconsequente no furor de sua insaciável busca.  Mas o que levou a Stacy a Charlotte é algo que só nos dirá o volume 2.

A genialidade de Trier nos vem nas entrelinhas. O humor afiado nos diálogos, apesar da trama amarga. Acompanhamos a vida sexual de Joe, da infância à velhice (somadas parte I e II, dizem), com direito a cenas de sexo reais e nudez frontal; algumas explícitas, incluindo-se cenas de penetração. Mas esta avalanche seria, apenas, um meio. A insaciável busca de Joe por sensações, por sentir algo, seja lá o que for.

Está todo mundo cheio de tesão para assistir ao pornô-cabeça do controverso diretor dinamarquês, mas Ninfomaníaca é a antítese da excitação erótica.

Ninfomaníaca – Volume 1 marca pela ousadia ao explorar um tema tabu, ao trazer análise emocional sobre algo que poderia facilmente ser banalizado, ao fazer graça e ironizar em momentos surpreendentes, ao causar absoluto desconforto nos telespectadores em suas poltronas. Mas, ao final, créditos subindo e fica em nós, além de algum mal estar, um questionamento: até que ponto a vontade de chocar não é um fim em si mesmo? Trata-se de um filme ambicioso que deixa uma expectativa enorme para o que vem a seguir mas absolutamente indigesto, por vezes.

Um comentário:

  1. Lars Von Trier nunca acreditou em nenhum sistema de valor disponível. Ninfomaníaca retrata a agonia da luxúria, com sua cosmologia do terror, niilismo e deboche. Em tempos onde não é mais permitido estabelecer um limite entre o que é arte ou não.

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