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domingo, 28 de julho de 2013

eu sou é eu mesmo






“Só agora é que assoma, muito lento, o difícil clarão riminiscente, ao termo talvez de longuíssima viagem...”

E  o clarão, apesar de sua (sem) velocidade, é permanente. Repito sempre a todos  ao meu redor, que apesar de vagarosamente, a recuperação é uma ascendente estimulante. Toda semana consigo pontuar algo que não conseguia antes ou se conseguia, o fazia visivelmente mal ou pior.

A memória recente, a consciência, a lógica, o senso crítico e outros membros da mesma família neurológica, ou da razão ‘itself’,  não estavam lá comigo e aprendemos todos ( familiares e outros laços afetivos) que em termos de traumatismo ou o que quer que seja afetando o cérebro, “perdida a claridade do juízo”, o que não está lá, precisa ser estimulado.

Reitero, portanto, no meu caso, ao menos, a visível e notória força do estímulo. Como toda informação está, de certa forma, enraizada. Tenho que lembrar meu organismo que sim, já sei fazer aquilo. Dou a ele a lembrança  e lhe basta este ‘lampejo’ para que ele  pegue as rédeas e, muitas vezes, siga o caminho sozinho. Parece autodidata. Tudo o que perdi e desaprendi, muitas vezes, me basta  um vislumbre e em uma, duas ou três tentativas  que engreno e sigo REaprendendo  e REfazendo sozinha.

Quando fiz força por voltar a trabalhar, a contragosto de meus pais e outros ao meu redor, o documento médico  atestando minha condição PNE (Portadora de necessidades especiais), além de um código CID (Código Internacional de Doenças), trazia ainda, “raciocínio lógico afetado e confusão mental”.

Hoje vejo que este documento não pontuava minha necessidade que  considero mais especial. A (DES)memória.  Sabemos, claro, da importância da memória enquanto função cognitiva e até relacional, social. Mas enquanto não precisamos e sentimos, efetivamente, suas lacunas, não temos NENHUMA ideia de sua dimensão.

O que somos além do que construímos, do que a memória faz de nós? Uma linguagem cifrada que muitas vezes nos faz agir sem sabermos por quê, como nos ensina James Hillman em seu ‘O Código do Ser’.  Nossas escolhas vida afora, “incluindo-se aí aquelas determinantes, estão sedimentadas no que somos, em nossa individualidade.

 Hillman postula ainda que nossa maior razão de vida está no processo de individuação.  É na crença em nossa individualidade e, ainda mais, na unicidade, que reside a vontade de vida, de ser mais.

E “Reperdida a remembrança, a representação de tudo se desordena.”  Quem sou eu? Que certezas,  crenças,  valores me alicerçam e justificam?

Além de perdida a memória de um tempo importante na formação de minha identidade; com o  raciocínio lógico afetado, somado à confusão mental, eu não articulava pensamento, fala, referências. Associação de qualquer natureza era um luxo muito grande para minhas sinapses perdidas e desconectadas.

Assim, passei um tempo perdida dentro de mim, sem me dar conta de nada, do ocorrido, do redor, das causas, das possibilidades.

Mas, com o tempo e com o passar das ocorrências e, ainda mais dos estímulos fui percebendo e sentindo que o que está em mim, verdadeiramente construído, independe de memória. Tem raiz mais funda. Talvez, como nos ensina Jung, seja mesmo anterior.

“Potencialmente a personalidade de cada indivíduo já está presente nele no seu nascimento e cada um já vem ao mundo com um determinado equipamento arquetípico que, encontrando os estímulos adequados no meio ambiente, vai permitir sua adaptação à realidade. Esse programa arquetípico que constitui nosso ser em potencial, ao qual Jung denominou Self ou Si-Mesmo, abrange a personalidade total, com sua parte consciente e inconsciente.

Como um diretor de teatro, o Si-Mesmo é uma espécie de organizador central que coordena as inúmeras ações, trocas e relações de vários personagens: os aspectos da personalidade. Ele é responsável pela caracterização da individualidade de cada pessoa, buscando sua melhor adaptação possível nas diversas fases do desenvolvimento ao longo da vida.”

E assim vou sentindo e vendo minha individualidade sendo ‘re’construída ‘exatamente como me contam que eu era, na personalidade.  Vou me revelando eu mesma no gosto, nas opiniões, nas atitudes, até mesmo nos textos que escrevo ou encaminho a todos, desde sempre. Ao passo e ao dia, sigo me reconstruindo com meus antigos alicerces que, ainda que silentes, estão em mim, e com o grande aprendizado que tive, tijolos novos nesta construção.

 “Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo! Só aquilo. Só tudo”.


domingo, 21 de julho de 2013

eu sou é eu mesmo


eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso



No segundo hospital, o Felício Rocho, era, ainda, alimentada por sonda. Mastigar e engolir eram tarefas muito especializadas.

 Não conseguia ficar sentada. A cabeça não se sustentava, mas precisava para aliviar o pulmão. Assim, me sentavam e apoiavam as laterais.

 Desaprendi tudo, funções, movimentos, articulações, tamanha a lesão craniana. E quando falamos em lesões, fraturas e afins no cérebro, a recuperação é complicada porque a capacidade de regeneração ali é muito limitada. Assim, a morte de neurônios significa, muitas vezes, a perda de funções cerebrais. Por isto ‘zerei’ muitas delas, como o equilíbrio, que não estava lá. Minha perna estava, depois de um tempo, inteira (tive uma fratura – coisa pouca(!)), mas eu não tinha equilíbrio para ficar de pé.

A memória dita recente (sim, temos duas, a recente e a antiga), no meu caso um espaço entre dez e quinze anos, foi perdida. Memorizar também não era um verbo conjugável. O que acontecia agora não era lembrado depois. Menos ainda se os advérbios temporais fossem hoje e amanhã.

Mas um conhecimento importante que adquiri na prática, sobre nossa ‘ferramenta’ craniana,  é que, sob estímulo,  o cérebro é sim, capaz de desenvolver outras regiões para cuidar das mesmas funções que cuidavam aquelas traumatizadas.

Assim, funciona tudo como um recomeço. Tenho de ensinar as mesmas funções a outras regiões que nunca praticaram nada d’aquilo. Mas parece haver aí, nestas aulas, nestes ‘re’-ensinamentos, ao corpo e à cabeça, um ‘plus a mais’. Temos de começar do zero, mas feita a primeira lição, parece acontecer o resgate de alguma memória perdida e aí os dois, corpo e mente, engrenam segunda marcha e fazem um caminho mais acelerado. A segunda primeira vez é mais profissional, “o senhor veja”. 5

Ainda existir, parecia um desatino…6, mas o saldo pessoal é nada no corpo e um mundo na cabeça.   

Tradução: depois de tudo tanto, não guardo sequelas físicas e a cabeça já vai encontrando seu caminho. A memória ainda não chegou lá, mas corre bravamente a caminho. O raciocino, às vezes, pode soar ilógico, mas vai emendando as peças do quebra cabeças, com peças novas para encaixar, as do aprendizado e do crescimento, que esses sim, ganharam espaço e me deram outras cores e ângulos novos de presente.



domingo, 14 de julho de 2013

eu sou é eu mesmo


ainda existir parecia um desatino

Saldo médico-hospitalar: Vinte e oito dias em coma, outro mês em uma recuperação pós trauma no Hospital Felício Rocho, quatro semanas em um hospital de reabilitação, o Sarah Kubistcheck.

Findos três meses de reabilitação em hospitais, estava pronta para um ano em recuperação em casa, com a onipresença e apoio incondicional de meus pais, todo o tempo, em todas as etapas, buscando todas as possibilidades. Um ano de fisioterapia, todos os dias e fonoaudiologia toda semana, acompanhamento ortopédico e nutricional. Outros dois anos, finalmente, em uma terapia médica pós-trauma, visando resgatar funções cognitivas perdidas com estas lesões cerebrais de nome esquisito.

Na ambulância, saindo do hospital de emergência, a caminho de um segundo hospital. Uma primeira ação voluntária e consciente. Chorei. Antes, em coma, não sentia o corpo, não dava sinal de nada e agora aquelas fraturas todas  ali comigo e toda a dor que elas carregavam consigo. Um choro foi a primeira manifestação de que havia vida ali.

A única lembrança que tenho de tempos de hospital, do segundo, é de uma pergunta que fiz à minha mãe, ainda balbuciante e meio chorosa, quando comecei a falar: “- cadê minha mãe?”, perguntei a ela.  Não tinha certeza se ela era uma enfermeira que haviam colocado para me vigiar ou se era, ela, minha mãe. 

O condicionamento humano independe de memória. Nos momentos em que estamos fragilizados e machucados, instantaneamente, buscamos a mãe, o colo, a proteção que elas significam. Ainda que não saibamos bem identificar. Hoje imagino a dor dela.

domingo, 7 de julho de 2013

eu sou é eu mesmo


viver é muito perigoso - o acidente e as sequelas

Foi um acidente, um quase ponto final.

Mas sempre adepta das artes literárias que sou, resolvi brincar de conotação e pingando dois outros pontos, ensinei para meu corpo um significado, literal, de reticências.

Estava passando um final de semana em terras mineiras, por razões não muito felizes. A caminho de um enterro, na Avenida  Amazonas, o motorista atravessa o sinal vermelho e quem paga a conta sou eu.

Após o forte impacto entre os dois veículos, tudo se apagou.  Acharam, a princípio, que eu havia sofrido apenas um desmaio, pois meu corpo não apresentava sinais de fraturas, cortes ou escoriações.  Tentaram me reanimar.

Só acordei, segundo me contam, vinte e oito dias depois, pós coma, no João XXIII, hospital de emergência da capital mineira. Fui internada com forte lesão cerebral, em Glasgow 4, segundo Moreno, também meu primo e irmão do Branco do Rosa,  meu médico durante o coma. De  acordo a esta escala de avaliação neurológica, cheguei no penúltimo grau de gravidade do trauma, que vai de 3 a 15.

A leitura do diagnóstico já me causa vertigem. Encontrada na cena do acidente em glasgow 4, portanto, e  anisicórica, fui prontamente intubada e posteriormente traqueostomizada. Foram  identificadas as lesões cerebrais  HSAT, LAD, além de outras espalhadas corpo afora, como hemopneumotorax D, lesão hepática grau III, fratura de acetábulo D e E, seis costelas quebradas, hemiplegia e fratura no fêmur. Tradução? Glossário post scriptum.

Minha mãe e meu pai, no dia do acidente, estavam, de férias, a caminho do Rio Grande do Norte. Em escala no Rio de Janeiro, por alguma razão que me escapa ao entendimento, ela ligou o celular e assim chegou a notícia de um acidente que lhes definiu os próximos meses. Meus pais, escala de voo, telefone. Tsc tsc tsc .  Incompatíveis. O aparelho deve estar perdido n’algum canto da mala, no bagageiro.

Mas o celular estava com eles, e surpreendentemente, ligaram por estas poucas horas que seria a escala, receberam a ligação e adeus Natal. Não encontraram voo para voltar, direto do Rio. Tiveram de vir até SP e daqui ir ao meu encontro no hospital de emergência em Belo Horizonte.

Minha mãe me contou que minha urgência foi privilegiada em detrimento de outras, dada a gravidade da situação.

E ela, assim, passou o mês inteiro em Belo Horizonte, indo ao hospital uma vez, uma hora por dia, para me ver. E  Augusto, o Moreno, foi fundamental para lhe dar alguma tranquilidade.  Era tudo muito grave mas… sempre mas…  alguma oração adversativa.

Segundo ele mesmo me contou, muito tempo depois, não houve necessidade de intervenção cirúrgica. Um quadro, sim, muito grave, MAS de evolução permanente. Meu corpo se perdeu, MAS sozinho se encontrou por estas veredas.


GLOSSÁRIO MÉDICO

ANISICORIA - é uma condição caracterizada pelo tamanho (diâmetro) desigual das pupilas Esta desigualdade pode ser causada por traumas sofridos em um dos hemisférios do cérebro.

TRAQUEOSTOMIA - procedimento cirúrgico no pescoço que faz um orifício artificial na traquéia, abaixo da laringe, indicado em emergências realizado em pacientes necessitando de ventilação mecânica e nas intubações prolongadas.

HSAT -  Hemorragia Subaracnoidea Traumática : muito comum no trauma . É sangue no espaço subaracnoide, onde corre o liquor, o liquido de " hidratação " do cérebro.

LAD – lesão difusa do encéfalo (cérebro, tronco encefálico e cerebelo) decorrente de traumatismo fechado da cabeça.  Refere-se às mudanças nos neurônios, em suas redes de conexões e em suas funções, criadas por novas experiências.

HEMOPNEUMOTORAX - perfuração do pulmão, normalmente por fraturas de arcos costais, levando a sangue no espaço pleural e a ar também no espaço pleural.

ACETÁBULO -  faz parte da articulação do quadril. O acetábulo é o soquete da articulação, enquanto o fêmur é a bola, formando uma articulação do tipo bola-soquete.  A fratura do acetábulo ocorre quando o soquete é quebrado.

HEMIPLEGIA - Paralisia de uma das metades do corpo, ocorrida, na maioria das vezes, em virtude de uma lesão cerebral no hemisfério oposto.